Anos de chumbo
6/9/2010
Voltam à tona os temas da censura e da liberdade de expressão nos meios artísticos e culturais brasileiros
Na noite de 29 de julho de 1985, em ato público realizado no Teatro Casa Grande do Rio de Janeiro, centenas de intelectuais e artistas ouviram do então ministro da Justiça, Fernando Lyra, a enfática declaração: "Está extinta oficialmente a censura no Brasil". Decorridos 25 anos, entidades como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) e a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) instituíram 2010 como o ano "em defesa da liberdade de imprensa", por sentirem-se ameaçadas pelas tentativas de regulamentação da mídia em nome do controle social, defendida por alguns setores do governo da República. A polêmica teve início quando se constatou que um projeto divulgado em relação ao Plano Nacional de Direitos Humanos continha a criação de uma comissão para classificar os meios de comunicação de acordo com seu compromisso com o assunto. Os temores têm origem na recordação de tempos sombrios para a liberdade de expressão no Brasil, sobretudo durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e no regime ditatorial implantado pelos militares entre 1964 e 1985.
Golpe na liberdade
Nos anos em que vigorou o Estado Novo de Getúlio Vargas, a sempre instável democracia brasileira sofreu seu primeiro rude golpe, com a implantação de uma rigorosa censura nos mesmos moldes das então existentes em países de regimes totalitários, como Espanha, Portugal e Itália. Entre os fatos mais absurdos da época, figura a proibição de "O Grande Ditador", para muitos cinéfilos a melhor criação do genial cineasta Charlie Chaplin, que faz no filme uma implacável crítica aos regimes ditatoriais, em particular ao comandado pelo sanguinário nazista Adolf Hitler. Entre as ridículas alegações do censor, Major Coelho dos Reis, diretor do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a obra de Chaplin continha "cenas definitivamente comunistas e desmoralizadoras das Forças Armadas". Mais tarde, quando o Brasil rompeu as relações diplomáticas com os países do Eixo e passou a apoiar os Estados Unidos, a situação se inverteu por completo, ao sabor das novas conveniências da política externa de Vargas. Outra implicância da censura, nos anos 30, era quanto aos trajes sumários de Maureen O´Sullivan e Johnny Weissmüller, na interpretação dos castos personagens Jane e Tarzan, o popular "Rei das Selvas".
Um fato lamentável, registrado no período do Estado Novo, é que então se tornou comum a presença de jornalistas e intelectuais no corpo de censores. Entre eles, nomes respeitáveis como Prudente de Morais Neto, Josué Guimarães e o poeta Vinicius de Moraes. Vinicius, por mais estranho que possa parecer diante de outras atitudes suas, tomadas posteriormente, não queria que se mostrasse nos filmes o lado pobre da realidade brasileira. Segundo ele, os diretores nacionais "como que tinham a sedução das ruas sujas, dos pantanais, das caras feias, das cidadezinhas mais desinteressantes".
Com o objetivo de tirar a "feiura" nacional de circulação, o poeta proibiu um filme sobre uma escola pública do interior do Rio de Janeiro, mencionando explicitamente que o cinegrafista "fez reunir a garotada, quase todos pretinhos, positivamente imundos, resfriadíssimos, o nariz escorrendo, em frente à tal escola, um barracão troncho de taipas, com uma mão de cal já toda descascada". Está certo que, para o chamado "Poetinha", a beleza fosse "fundamental", mas nunca ao ponto de mascarar uma realidade tão notória e de justificar postura tão racista e preconceituosa.
A censura brasileira tornou-se menos virulenta após a queda da ditadura de Getúlio Vargas, mas voltou com redobrado furor durante o regime de exceção que dominou o Pais entre 1964 e meados da década de 1980.
Na ditadura militar
Durante a ditadura militar instaurada no País a partir de 1964, o francês Jean-Luc Godard, internacionalmente famoso e respeitado diretor de "Acossado" e "Alphaville", era considerado "o messias do cinema subversivo" e Glauber Rocha "seu melhor aluno", supostamente encarregado de liderar o movimento de "comunização" da América Latina. Na época, foi muita explorada a célebre frase de Godard afirmando que "as idéias são revólveres que não matam, mas ajudam a matar".
No filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, um ignorante censor cortou a cena que apresentava uma faixa com os dizeres: "A Praça é do povo, e o céu é do condor...", por considerá-la "altamente subversiva". Por uma extrema falta de informação cultural básica, o responsável pelo corte desconhecia que o verdadeiro autor da frase era o baiano Castro Alves, um dos maiores expoentes da poesia no Brasil em todos os tempos.
Em parecer sobre "Jardim de Guerra", de Neville de Almeida, o censor chegou ao disparate de tentar deter o curso da história, ao ordenar "corte integral da cena em que a atriz Maria do Rosário discorre sobre os principais acontecimentos que marcaram o início do século". Também com o objetivo de bajular os generais de plantão, Waldemar de Souza fez uma afirmação absurda: "Filmes de kung-fu e karatê querem infiltrar mensagens de revolta na mente da juventude universitária ocidental".
Jorge Amado, autor brasileiro conhecido em todo o mundo, e o diretor Bruno Barreto, por causa de "Dona Flor e Seus Dois Maridos", baseado numa das obras mais populares do querido escritor baiano, foram rotulados como "criadores de expressões chulas" e incentivadores da "prática sodômica" (sic).
O diretor Nelson Pereira dos Santos conta que, quando foi a Brasília fazer a defesa de seu filme "Como Era Gostoso o Meu Francês", uma figura do alto escalão da ditadura vociferou: "Aqueles homens com pinto de fora não pode, não". O atônito Nelson teve de conter o riso ao ouvir a hilária justificativa de que "o pinto do personagem francês (interpretado pelo ator Arduíno Colassanti) é maior do que o dos índios, e isso é um acinte à imagem do homem brasileiro". Parece até uma piada, mas o fato realmente aconteceu durante os surrealistas, embora tenebrosos, "anos de chumbo".
JOSÉ AUGUSTO LOPESREPÓRTER
Na noite de 29 de julho de 1985, em ato público realizado no Teatro Casa Grande do Rio de Janeiro, centenas de intelectuais e artistas ouviram do então ministro da Justiça, Fernando Lyra, a enfática declaração: "Está extinta oficialmente a censura no Brasil". Decorridos 25 anos, entidades como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) e a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) instituíram 2010 como o ano "em defesa da liberdade de imprensa", por sentirem-se ameaçadas pelas tentativas de regulamentação da mídia em nome do controle social, defendida por alguns setores do governo da República. A polêmica teve início quando se constatou que um projeto divulgado em relação ao Plano Nacional de Direitos Humanos continha a criação de uma comissão para classificar os meios de comunicação de acordo com seu compromisso com o assunto. Os temores têm origem na recordação de tempos sombrios para a liberdade de expressão no Brasil, sobretudo durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e no regime ditatorial implantado pelos militares entre 1964 e 1985.
Golpe na liberdade
Nos anos em que vigorou o Estado Novo de Getúlio Vargas, a sempre instável democracia brasileira sofreu seu primeiro rude golpe, com a implantação de uma rigorosa censura nos mesmos moldes das então existentes em países de regimes totalitários, como Espanha, Portugal e Itália. Entre os fatos mais absurdos da época, figura a proibição de "O Grande Ditador", para muitos cinéfilos a melhor criação do genial cineasta Charlie Chaplin, que faz no filme uma implacável crítica aos regimes ditatoriais, em particular ao comandado pelo sanguinário nazista Adolf Hitler. Entre as ridículas alegações do censor, Major Coelho dos Reis, diretor do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a obra de Chaplin continha "cenas definitivamente comunistas e desmoralizadoras das Forças Armadas". Mais tarde, quando o Brasil rompeu as relações diplomáticas com os países do Eixo e passou a apoiar os Estados Unidos, a situação se inverteu por completo, ao sabor das novas conveniências da política externa de Vargas. Outra implicância da censura, nos anos 30, era quanto aos trajes sumários de Maureen O´Sullivan e Johnny Weissmüller, na interpretação dos castos personagens Jane e Tarzan, o popular "Rei das Selvas".
Um fato lamentável, registrado no período do Estado Novo, é que então se tornou comum a presença de jornalistas e intelectuais no corpo de censores. Entre eles, nomes respeitáveis como Prudente de Morais Neto, Josué Guimarães e o poeta Vinicius de Moraes. Vinicius, por mais estranho que possa parecer diante de outras atitudes suas, tomadas posteriormente, não queria que se mostrasse nos filmes o lado pobre da realidade brasileira. Segundo ele, os diretores nacionais "como que tinham a sedução das ruas sujas, dos pantanais, das caras feias, das cidadezinhas mais desinteressantes".
Com o objetivo de tirar a "feiura" nacional de circulação, o poeta proibiu um filme sobre uma escola pública do interior do Rio de Janeiro, mencionando explicitamente que o cinegrafista "fez reunir a garotada, quase todos pretinhos, positivamente imundos, resfriadíssimos, o nariz escorrendo, em frente à tal escola, um barracão troncho de taipas, com uma mão de cal já toda descascada". Está certo que, para o chamado "Poetinha", a beleza fosse "fundamental", mas nunca ao ponto de mascarar uma realidade tão notória e de justificar postura tão racista e preconceituosa.
A censura brasileira tornou-se menos virulenta após a queda da ditadura de Getúlio Vargas, mas voltou com redobrado furor durante o regime de exceção que dominou o Pais entre 1964 e meados da década de 1980.
Na ditadura militar
Durante a ditadura militar instaurada no País a partir de 1964, o francês Jean-Luc Godard, internacionalmente famoso e respeitado diretor de "Acossado" e "Alphaville", era considerado "o messias do cinema subversivo" e Glauber Rocha "seu melhor aluno", supostamente encarregado de liderar o movimento de "comunização" da América Latina. Na época, foi muita explorada a célebre frase de Godard afirmando que "as idéias são revólveres que não matam, mas ajudam a matar".
No filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, um ignorante censor cortou a cena que apresentava uma faixa com os dizeres: "A Praça é do povo, e o céu é do condor...", por considerá-la "altamente subversiva". Por uma extrema falta de informação cultural básica, o responsável pelo corte desconhecia que o verdadeiro autor da frase era o baiano Castro Alves, um dos maiores expoentes da poesia no Brasil em todos os tempos.
Em parecer sobre "Jardim de Guerra", de Neville de Almeida, o censor chegou ao disparate de tentar deter o curso da história, ao ordenar "corte integral da cena em que a atriz Maria do Rosário discorre sobre os principais acontecimentos que marcaram o início do século". Também com o objetivo de bajular os generais de plantão, Waldemar de Souza fez uma afirmação absurda: "Filmes de kung-fu e karatê querem infiltrar mensagens de revolta na mente da juventude universitária ocidental".
Jorge Amado, autor brasileiro conhecido em todo o mundo, e o diretor Bruno Barreto, por causa de "Dona Flor e Seus Dois Maridos", baseado numa das obras mais populares do querido escritor baiano, foram rotulados como "criadores de expressões chulas" e incentivadores da "prática sodômica" (sic).
O diretor Nelson Pereira dos Santos conta que, quando foi a Brasília fazer a defesa de seu filme "Como Era Gostoso o Meu Francês", uma figura do alto escalão da ditadura vociferou: "Aqueles homens com pinto de fora não pode, não". O atônito Nelson teve de conter o riso ao ouvir a hilária justificativa de que "o pinto do personagem francês (interpretado pelo ator Arduíno Colassanti) é maior do que o dos índios, e isso é um acinte à imagem do homem brasileiro". Parece até uma piada, mas o fato realmente aconteceu durante os surrealistas, embora tenebrosos, "anos de chumbo".
JOSÉ AUGUSTO LOPESREPÓRTER
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